canela com fio
A tradição industrial de Loriga remonta a meados do Séc. XIX,
quando em 1850 aí se instalou a primeira
fábrica de Lanifícios, movida a força hidráulica motriz.
As grandes rodas, movidas pela força das águas que desciam das
altas serranias da Estrela, acionavam os engenhos que, com grandes correias e
uma cadeia de outras rodas, movimentavam toda uma sorte de mecanismos, desde a
fiação à tecelagem, da cardação à ultimação, num constante e ruidoso vai-vem, a
que as gentes de Loriga se foram adaptando, com o decorrer dos anos.
Terra laboriosa e empreendedora, foi construindo, ao longo do
tempo uma comunidade cada vez mais numerosa e, consequentemente, o número de
crianças foi gradualmente aumentando, atingindo nos anos 60 do Séc. XX o auge
de crescimento, com a Escola Primária a rebentar pelas costuras, com 4 turmas
de rapazes e igual número de raparigas. Nenhuma terra da região, excluindo,
talvez, a sede do Concelho, teria tantas crianças como Loriga.
As crianças davam um colorido muito especial e um movimento
inusitado às suas ruas e vielas e as brincadeiras, tradicionais, recriadas ou
mesmo inventadas eram a ocupação preferencial da “pirralhada”.
De entre as muitas atividades lúdicas que, na altura,
sobressaíam nas ruas da vila, havia uma que, intimamente ligada aos lanifícios,
dependia, em absoluto, dessa atividade industrial. Era o Jogo do Óculo.
Como a necessidade aguça o engenho, a criatividade das crianças
levou-as a inventar este jogo, que fazia a síntese de vários outros. Tinha
algumas semelhanças com o “chinquilho ou malha”, pois tal como nesse jogo havia
um lançamento de um disco, embora muito mais pequeno, o óculo.
Havia também alguma similitude com o berlinde, uma vez que o
objetivo era “abafar” o óculo do adversário através da aproximação ao mesmo, à
distancia de um palmo.
Este era, no entanto, um jogo muito original e que fazia uso da
matéria prima que abundava nas “lãzeiras”, locais onde eram depositados os
resíduos industriais, à época.
Antes de mais convém explicar o que é o óculo. Trata-se da base
da canela de madeira que era usada nas lançadeiras dos teares. Um disco
metálico com um orifício no meio que reforçava a base das canelas, para as
proteger quer nas caneleiras, máquinas onde se enchiam as canelas de fio, quer
nas lançadeiras que com o seu vai-vem, nos teares iam tecendo as peças de
fazenda.
Lançadeiras e canela
Quando as canelas estavam danificadas eram, normalmente,
inutilizadas e depositadas nas
“lazeiras”. Era lá que as crianças as recolhiam e tratavam de as despojar dos
óculos.
Havia dois tipos de óculos, cujo valor relativo era diferente.
É que para além de serem ganhos ao jogo, podiam, também, ser objeto de troca
entre as crianças que se dedicavam a este “desporto”.
Assim, os óculos de latão eram os menos valiosos. Na troca
valiam um para um. Já os de alumínio, por serem mais pesados e, por isso, darem alguma vantagem no jogo, valiam três e
às vezes quatro dos outros. Algumas das crianças até atribuíam a estes óculos o
nome de “bonzura” porque, pelo seu peso e pela diferença de atrito, eram muito
bons no arremesso e na maior capacidade de controle e de precisão dos seus
movimentos de aproximação aos óculos dos adversários.
O
objectivo deste jogo era ganhar os óculos aos adversários. Poderia ser jogado
por dois ou mais jogadores.
O
jogador ganhava um óculo ao seu adversário quando, ao arremessar o seu, o mesmo
ficasse à distância de um palmo ou menos de um palmo, do óculo do seu
adversário.
Uma
das variantes do jogo é que o mesmo poderia ser jogado com a utilização de uma
parede.
Quando
jogado sem a utilização de uma parede, era sorteado quem seria o primeiro a
arremessar o seu óculo. Este dirigia o disco para um local aleat oriamente
à sua escolha.
Os
concorrentes seguintes lançavam os seus discos na direção do primeiro, com a finalidade de se aproximarem do mesmo.
Ganhava
aquele que, ao lançar o seu óculo, conseguisse colocá-lo à distância de um
palmo, ou menos, do óculo de outro participante. O jogo terminava, sempre que
um jogador conseguisse arrebatar os óculos dos outros que estivessem em jogo
Sempre
que o jogo recomeçava, quem iniciava os lançamentos era o vencedor do jogo
anterior.
Na
variante do jogo com a utilização de uma parede, procedia-se, igualmente, à
escolha do primeiro concorrente a jogar. Este, colocava-se de frente para uma parede contra a qual atirava o seu óculo, tentando
colocá-lo o mais longe possível da parede, para não dar vantage aos
adversarios. Esta variante tinha algumas particularidades que tornavam o jogo
um pouco mais elaborado. Os jogadores poderiam utilizar os pés para permitirem
uma aproximação mais precisa aos óculos dos adversaries. Para tal colocavam os
pés em forma de V, no local onde estava o óculo que pretendiam arrebatar e arremessando o seu contra a parede ele
poderia, mais facilmente aproximar-se pois tinha a barreira formada pelos pés
que não deixava o óculo afastar-se desse local.
Como
na variante anterior, ganhava o jogo o jogador que conseguisse arrebatar os
óculos dos adversarios.
Uma
das particularidades mais interessantes desta atividade lúdica era a forma como
os óculos eram guardados. Assim, cada participante, arranjava um cordão, um
“baraço” como na altura se denominava e os óculos eram enfiados nesse baraço,
que era normalmente pendurado à cintura. Como as duas pontas eram atadas, uma
na outra, o conjunto dos óculos enfiados no baraço assumia uma forma de
chouriça e por isso lhe davamos o nome de “Chouriça de Óculos”.
A
grande glória dos jogadores era exibirem as suas “Chouriça de Óculos” e quanto
maior fosse o número de chouriças, maior glória era alcançada. Eram exibidas
como se de autênticos troféus se tratassem.
4 comentários:
Joguei muito ao óculo nas duas referidas variantes. Arranjava-os, em geral, na Fábrica da Redondinha. Mas a sua origem eram as canelas (não tenho a certeza desta designação) da fiação, de fabrico totalmente em chapa, e não as dos teares. Assim, ou por a varia das ditas canelas ou por “vandalismo” nosso (pecador me confesso), lá se conseguiam as bases das canelas, que designávamos por óculos. O acesso que tinha à zona de cardação e fiação da Redondinha, onde o meu Pai trabalhava, permitem-me garantir que assim era.
Joguei muito ao óculo nas duas referidas variantes. Arranjava-os, em geral, na Fábrica da Redondinha. Mas a sua origem eram as canelas (não tenho a certeza desta designação) da fiação, de fabrico totalmente em chapa, e não as dos teares. Assim, ou por a varia das ditas canelas ou por “vandalismo” nosso (pecador me confesso), lá se conseguiam as bases das canelas, que designávamos por óculos. O acesso que tinha à zona de cardação e fiação da Redondinha, onde o meu Pai trabalhava, permitem-me garantir que assim era.
Acredito que assim seja Armando. No entanto, como trabalhei na caneleira, na Fábrica Nova, durante as férias e como era lá que nos abastecíamos, posso garantir que as canelas dos teares também tinham uma base de latão, que nós usávamos para o jogo. Daí talvez a explicação para as duas variedades de óculos. Uns eram das canelas dos teares outras das da fiação, como dizes.
Além destes, havia os óculos de zinco, que até eram os mais valiosos.Não recordo o "câmbio" mas numa época era de 5 de lata para 1 de zinco e 2/3 de lata por 1 de alumínio...o de zinco era o mais valioso, sem dúvida.
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